Há um passo a passo simples para você inventar ou fomentar uma seita ou
religião. Tais etapas são comuns a todas elas e demonstram um padrão não apenas
de comportamento na sua criação, como também na mentalidade dos seus
seguidores. Tome o manual abaixo como “a planta baixa das religiões”.
1. Escolha uma
ideia poderosa – quase megalomaníaca – e de difícil acesso ao público
leigo.
Pessoas costumam ser movidas por idealizações. Dificilmente você
entregaria sua vida por algo que não tivesse uma expressividade em especial ou
soasse grandioso. Provavelmente gastaria seu dinheiro com o carro do ano ou
investiria seu tempo numa viagem dos sonhos.
O pensamento de seita precisa despertar um anseio maior – a felicidade
eterna, a paz de espírito, o paraíso.
2. Eleja um inimigo
comum.
A mente humana, no funcionamento mais básico e primitivo, opera sob os
influxos do sistema cerebral reptiliano que rastreia potenciais perigos à
integridade física e psicológica do sistema como um todo.
Este sistema só reconhece inimigos e aliados. Não há meio termo.
Os marqueteiros sabem muito bem como ativar o desejo de escassez das
pessoas anunciando que um produto vai acabar, por exemplo. Assim, o consumidor
vai lutar 1) contra a escassez e 2) contra o tempo. Hitler sabia muito bem como
dar um direcionamento ao caos social, financeiro e político da decadência alemã
na década de 20: o povo judeu. Qualquer desconfiança pessoal teria fim sob a
alegação de uma raça intrusa e que despertasse um sentimento comum a todos
(neste caso, o sentimento de se sentir ameaçado). Isso redirecionou as
desconfianças em relação ao amigo preguiçoso e à esposa safadinha a outros
“inimigos”. Seus olhos tinham um alvo certo e bastava atacar numa só direção.
3. Coloque uma meta
altamente utópica, mas que seja um desejo de aspiração coletiva.
Se eu prometer a você aumento de salário, um braço mais musculoso ou uma
viagem para Nova York, serei cobrado por isso entre três e seis meses. Se o
resultado não for entregue no prazo, vou virar as costas para você dizer que é
um embuste, que sou tratante.
Mas e se eu prometer algo impalpável, abstrato e com definição duvidosa?
Isso é perfeito! Você correrá por anos a fio atrás daquilo e, caso não atinja o
alvo, eu posso dizer que foi você que não mirou direito ou que colocou pouca
vontade.
Com o passar do tempo, você realmente vai acreditar que a falha é sua.
Afinal, sua auto-estima estará balançada e seu sentimento de culpa dominará
suas próximas ações. Prato cheio para criar uma nova meta dentro da grande
meta.
4. Crie uma
comunidade em torno dessa ideia.
Uma pessoa que tem razoável bom senso sabe direcionar sua vida com ações
ponderadas e com relativo controle para manter corpo saudável, finanças em
ordem e vida familiar decente. Ela entenderá que parte dos desajustes naturais
tem uma causalidade conhecida, afinal gastou demais, deu pouca atenção para os
filhos ou exagerou nos doces. Qualquer mudança vai passar por reorientar sua
vontade, ainda que sofridamente, naquela direção original. Outras pessoas (a
maioria) costumam atribuir seus problemas a causas que estão além do seu
controle, que vão de caos político a mágoa de Deus, por terem se portado mal
naquela semana. Essas pessoas são muito vulneráveis a promessas espetaculares,
pois são alimentadas pelo imediatismo, pelo desejo de resultados em curto prazo
e de preferência sem esforço.
Junte no mesmo lugar várias pessoas que pensam assim e terá uma bela
amostragem do que é o caos. Todas elas estão alimentando as ilusões umas das
outras; afinal, se eu desencorajar o sonho dos outros, é o meu que está em
risco.
A lógica é: eu não quero naufragar, então vou remar bem forte para que
os outros alcancem os objetivos comigo.
5. Use métodos de
controle dessa comunidade que regulem a integridade física, psicológica ou
moral dos seus participantes e os diferencie do inimigo comum.
Geralmente, esses métodos se apresentam na forma de livros reveladores
ou textos sagrados. Na prática, isso pode tomar formatos mais humilhantes, como
testemunhos com exposição de fragilidades pessoais, coerção em relação a
comportamentos inapropriados e até entrega de bens materiais.
Essa etapa é especialmente importante para diluir a identidade pessoal
do seguidor na mentalidade de seita. Tal identidade não existe mais como
vontade pessoal, mas como parte de um grupo. É aqui que podemos nos despedir do
senso crítico e do livre-arbítrio.
Pense em termos de futebol: se eu fizer parte da Gaviões da Fiel, por
exemplo, qualquer grande conquista do meu time será a minha, pois este é um
mecanismo natural de associação de imagens. Os meus gostos definem quem eu sou
e acho que, se meu artista favorito ganhar o Oscar, eu também fui premiado. Ser
um pessoa diferenciada entre as outras é o que alimenta o mercado de consumo de
luxo AAA. Ali não existe uma pessoa comum, só a fina nata dos endinheirados. Já
imaginou aquela cena clássica nos Vigilantes do Peso? Se um gordinho perde os
quilos necessários, ele é aplaudido; se ganhou peso, surge um silêncio de
reprovação velada. Ninguém quer ficar perto do gordinho falido. O mesmo
acontece numa seita, quando o fiel seguidor não se realizou ou obedeceu os
comandos do líder em questão, pois surge uma reprovação a qual ninguém quer se
submeter.
6. Invente um
evento “cataclísmico” contra o qual todos devem estar preparados.
O sentimento de que algo vai acabar faz aumentar o desejo por aquilo.
Afinal, a ideia de escassez valoriza o produto E quanto mais ameaçador for o
evento, mais intenso é o treinamento e maior será o nível de sacrifício a ser
realizado. O aguardo da ameaça cria na mente das pessoas um sentimento de
coletividade associado com urgência e fragilidade. Isso diminui o valor que as
pessoas têm e faz aumentar o passe do líder, pois ele conhece o método para
apaziguar as sequelas do problema.
Se o mundo vai acabar, o líder tem o kit salvador; se é o juízo final,
ele tem um acordo especial para preservar os seus prediletos, a fim de que o
grupo que está sob sua guarda seja poupado de toda a catástrofe.
Mesmo no caso de Jim Jones,
em que 900 seguidores cometeram suicídio, havia uma garantia: aqueles que se
matassem seriam os escolhidos e quem fosse covarde e ficasse vivo queimaria no
fogo do inferno. Funcionou.
7. Mostre-se como
alguém que anteviu ou superou as barreiras que os demais terão que superar.
A força do líder vem do fato de que ele teve uma revelação única e que
deverá ser passada aos poucos. O argumento é que nem todos estão preparados
para tamanho impacto de tudo aquilo que vem pela frente.
O líder teve a visão de algo especial que lhe outorgou uma autoridade
suprema: um teste de como decifrar algo, uma provação física, um dilema moral e
até fenômenos inimagináveis. Vale tudo.
Aquilo é repetido à exaustão pelos seguidores, raras vezes pelo líder
– afinal, ele não pode se autoproclamar “o enviado”. Os privilegiados
serão aqueles que fazem um sacrifício maior que os demais para receber os
ensinamentos da própria fonte superior. Essa mentalidade de informação secreta
já foi utilizada pela realeza e, até hoje, é utilizada por partidos políticos
ou empresas – informação privilegiada custa bem caro. Além disso, cria uma
pirâmide de interesse auto-renovável. Os que estão na base querem subir um
pouco; os que subiram um pouco mais também até chegar ao líder. Os imediatos se
forem corajosos e espertos, sacam qual é a brincadeira e criam sua própria
comunidade. Por isso é importante ter também uma hierarquia de sub-líderes,
o que fará com que os seguidores comuns desejem “subir de carreira” espiritual
com mais afinco e cedendo tudo de si.
***
O ponto é que essa fórmula mágica pode ser usada por seitas, religiões,
partidos políticos, times de futebol, empresas e, pasmem, sua família. É um
modelo generalizado que se difundiu e que funciona porque é baseado nos
sentimentos de culpa, medo, mérito e sacrifício. Enquanto nós vivermos baseados
neste paradigma, será difícil alcançar uma visão alternativa de funcionamento
social. Democracia legítima e co-construção de ideias que façam avançar de
verdade são coisas trabalhosas. Não tenho uma ideia do que seria algo realmente
saudável, mas posso dizer que qualquer sujeito com um pouco de disposição pode
causar mais prejuízo do que benefício ao arrastar pessoas vulneráveis num
caminho de alienação e pouco entendimento da vida.
Autor do texto:
Sonhador nato,
psicólogo provocador, escritor de um não best-seller e empresário. Adora contar
e ouvir histórias de vida. Nas demais horas medita, faz dança de salão, lava
pratos e escreve no blog Sobre a vida. No
twitter é@fredmattos.
Originalmente em: http://papodehomem.com.br/como-construir-uma-religiao-em-7-passos/